jeudi

AQUILO TEATRO






2005


A arte bem temperada
Victor Afonso
A arte multimedia representa um módulo de criação artisticamente múltiplo e interdisciplinar na forma e nos recursos utilizados, assim como uma espécie de simbiose umbilical entre linguagens estéticas aparentemente inconciliáveis. Os Gregos juntavam o drama teatral, o coro e o bailado recorrendo igualmente a diversa maquinaria para a construção de cenários. O grupo Aquilo apresentou a primeira performance multimedia em Abril de 96, quando estreou a produção intitulada “A Palavra Comida Pelos Deuses” (ver “TB” 2/5/96) que integrava quatro modalidades distintas de expressão artística: cinema, música, poesia e pintura. Com a apresentação do espectáculo “Imprevisto” (organizado pelo Aquilo e pela OFMUBI), na semana passada, o grupo de teatro da Guarda demonstrou ter desenvolvido um processo estilístico pessoal na abordagem a esta área artística, bem como uma interpretação original no manuseamento das premissas estéticas subjacentes à especificidade conceptual da arte multimedia.
Deste modo, “Imprevisto” foi menos um corolário acomodado da experiência adquirida com a peça “A Palavra Comida Pelos Deuses” e mais um trabalho de busca incessante de novas e estimulantes formas de produzir (inter)arte, experimentando a interactividade de processos criativos, a exploração de ideias e a dialéctica entre diversas manifestações artísticas, neste caso, abordando a música, a dança, a pintura, a poesia (e a fita magnética pré-gravada).“Imprevisto” resultou pois num exercício consistente de fusão artística, num «work-in-progress» (na linha dos grupos Fluxus, Living Theatre ou de John Cage), numa obra deliberadamente aberta porque não estereotipada e muito menos aprisionada em amarras de figuras estilísticas convencionais e facciosamente previsíveis; e deveras imprevisível foi a não comparência do anunciado músico Nuno Rebelo, impossibilitado de se deslocar à Guarda por causa da neve.
Apesar de ter havido um claro fio condutor orgânico - e uma coerência estrutural demarcada - durante todo o espectáculo, este foi sobretudo marcado pelo papel preponderante que a improvisação, enquanto linguagem estética autónoma, representou: na abordagem musical dos instrumentistas (livre e semi-espontânea), no exercício pictórico de Kim Prisu (uma espécie de esfuziante pintor naif “distorcido” que pintava ao sabor vacilante da expressividade artística envolvente), na performance discernida e sóbria das dançarinas e, claro está, na intervenção sempre imprevisível de Américo Rodrigues que, com os seus maneirismos vocais explorou fonética e ritmicamente textos do tão esquecido poeta Ângelo de Lima (para além de belos exercícios vocais conjugados com as vozes gravadas de cantores de Tuva e de Antonin Artaud).
Por vezes cerebral e inacessível, outras vezes luminosa e emotiva, a peça “Imprevisto” revelou uma notável heterogeneidade de afirmação de carácter e uma personalização efectiva (que se tem tornado, ao longo do tempo, cada vez mais rica) no desbravar de estimulantes formas de entendimento da criação artística contemporânea. Um espectáculo inovador não terá sido porventura (depois de Cage, Beckett ou Duchamp já não existem concepções inovadoras na arte contemporânea e os gritos viscerais e convulsivos do “coro cabeludo” são influência directa do Living Theatre), mas foi positivamente uma experiência que, pela sua intrínseca e inerente morfologia criativa, abriu novos horizontes de compreensão artística ao público menos esclarecido, brindando-o com um espectáculo comunicativo, rebuscado e maximizado por sensações inauditas e, quiçá, irrepetíveis. Foi de facto um espectáculo de arte bem «temperada», mesmo se levarmos em conta que, segundo o músico Debussy, “a arte é a mais bela das mentiras”.
VICTOR AFONCO

Aucun commentaire: